quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Esquema do texto 4: Elias e Dunning, capítulo 5

ELIAS,Norbert e DUNNING,Elias. “O futebol popular na Grã-Bretanha medieval e nos inícios dos tempos modernos”, In: _______________________________ A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. pp. 257-278

i. (257-262) Exemplos provenientes de proibições e processos judiciais, atestando a prática de diversos jogos, de caráter bastante violento, chamados de football, atestadamente praticados a partir do século XIV (1ª. proibição data de 1314); fraqueza do Estado [questão do processo civilizador] em fazer cumprir suas determinações; preocupações de caráter militar e de ordem pública ;

ii. (262-3) Hipótese: O futebol era apenas uma das erupções de violência frequentes na Idade Média, tanto as não institucionalizadas (conflitos espontâneos, como entre os negociantes de peles e vendedores de peixe em 1339, p.262) como formas mais institucionalizadas (dentre as quais o futebol) que funcionavam como um “lazer equilibrador” [perspectiva funcionalista]:

“Os confrontos semi-institucionalizados entre grupos locais, organizados em certos dias do ano, em particular nos dias santos ou feriados, constituíam um traço vulgar do padrão de vida tradicional nas sociedades medievais. Jogar com uma bola de futebol era uma das maneiras de concretizar uma destas lutas. De facto, constituía um dos rituais do ano, comuns nestas sociedades tradicionais. (...) Nesta época, o futebol e outros encontros semelhantes não eram apenas rixas acidentais. Eles constituíam um tipo de actividade de lazer equilibrador, profundamente entrelaçado na urdidura e trama da sociedade. Pode parecer-nos incongruente que ano após ano, nos dias santos e feriados, as pessoas se empenhassem nesta espécie de lutas. Num estádio diferente do processo de civilização, os nossos antepassados viveram-na, evidentemente, como um acontecimento óbvio e agradável.” (263)

iii. A maior flutuação dos sentimentos (263-4) O mito de uma sociedade tradicional marcada por uma grande “solidariedade”, tensões e conflitos menos agudos, harmonia superior às sociedades contemporâneas. Sociedades estruturadas sobre outra lógica, marcadas por extremos [Huizinga]: “’simpatia amiga’ forte e espontânea” convivendo perfeitamente com “inimizades e ódios igualmente fortes e espontâneos” (264); em suma:

“O que era realmente característico, pelo menos nas sociedades camponesas tradicionais na Idade Média, era a flutuação muito maior de sentimentos de que as pessoas eram capazes e, relativamente a isso, a mais elevada instabilidade das relações humanas em geral. No que respeita à menor instabilidade das restrições internas, a força das paixões, o calor e a espontaneidade dos actos emocionais distinguiam-se por duas vias: na bondade e prontidão para ajudar, assim como na rudeza, insensibilidade e prontidão para ferir.” (264)

iv. (264-5) O futebol da Terça-Feira Gorda é apenas um exemplo destas tradições de ‘dupla face’ (expressando unidade-solidariedade e ao mesmo tempo hostilidade);

v. (265-6) A grande capacidade de sobrevivência do futebol medieval deve-se ao fato dele ser um ritual tradiconal, associado ao calendário religioso, à época muito mais “entranhado” na vida cotidiana e muito menos solene do que hoje; “as actividades seculares eram mais religiosas e as actividades religiosas mais seculares” (266)

vi. (266-7) A função desempenhada pelos jogos de futebol na Idade Média (válvula de escape para tensões entre grupos):

“As fricções entre comunidades vizinhas, corporações locais, grupos de homens e de mulheres, jovens casados e homens solteiros mais jovens eram, com frequência, endêmicas. Se os temperamentos se exaltavam podiam conduzir, sem dúvida, em qualquer momento, a explosões de luta aberta. Mas, em contraste com as nossas, na sociedade medieval existiam ocasiões tradicionais em que algumas destas tensões podiam encontrar expressão sob a forma de luta que era sancionada pela tradição e, provavelmente, também durante um período considerável, pela Igreja e autoridades locais. Os registros mais antigos mostram que, muitas vezes, as lutas entre representantes dos grupos locais, com ou sem futebol, constituíam parte de um ritual anual” [lembrar do texto de Darnton sobre o massacre dos gatos]; (...) Durante este período, o jogo de futebol proporcionava um desses escapes para as constantes tensões entre grupos locais.” (266)

vii. (267-8) Um exemplo de 1553 (em Dorsetshire), mostrando um ritual popular (da Corporação de Homens Livres Marmoristas ou Trabalhadores em Pedreiras), nos três dias de Entrudo, do qual o futebol fazia parte e que envolvia a iniciação dos aprendizes, o pagamento de um ‘xelim de casamento’ que posteriormente financiava a “pensão” da viúva (aprendizes trabalhando para ela) e a compra de uma bola de futebol pelo último que tivesse se casado. [o texto não fala, mas é óbvio que o jogo devia ser entre mestres e aprendizes]

viii. (268) Embora as pessoas estivessem fortemente ligadas aos seus modos de vida tradicionais, pois eram estas tradições que serviam para solucionar os conflitos na ausência de um código unificado de leis executado por um tribunal imparcial, as tradições não eram imutáveis, iam se transformando imperceptivelmente à medida em que as relações entre os grupos se transformavam ou sob o impacto de guerras, conflitos civis, epidemias e outros abalos.

ix. (268-9) Eram sobretudo tradições orais, transmitidas diretamente, geração a geração:

“Não era costume fixar de maneira formal, por escrito, qualquer das regras de jogos como o futebol. Os filhos

(269) jogavam como os pais haviam jogado, ou, no caso de dúvidas, como eles pensavam que os seus pais jogavam.”

x. (269-270) Sem regras escritas nem organizações centrais unificadoras, menções ao futebol nos documentos medievais não implicam a prática do mesmo jogo; mas ao mesmo tempo, jogos nomedados de forma diferente podiam ser semelhantes, estando a diferença apenas no tipo de utensílio utilizado, por vezes falava-se em jogar ‘com uma bola de futebol’ e não ‘jogar futebol’. De qualquer maneira:

“a bola que foi chamada ‘futebol’ tinha algo em comum com a que é utilizada nos jogos de futebol de hoje: era uma bexiga cheia de ar revestida, por vezes, mas nem sempre, de couro. As comunidades camponesas de todo o mundo usavam essas bolas como um meio para o seu divertimento. Existem, certamente, registros do seu uso em muitas regiões da Europa medieval. Se ela possuísse as dimensões certas e elasticidade, e não fosse demasiado grande, uma tal bexiga de animal repleta de ar, revestida de couro ou não, adaptava-se melhor, pro-

(270) vavelmente, ao impacte dos pés do que uma pequena bola sólida. (...) as características elementares, o caráter do jogo traduzido num confronto entre grupos diferentes, o prazer da luta manifesto e espontâneo, a desordem e o nível relativamente elevado de violência física socialmente tolerada eram sempre os mesmos.”

Daí resulta que: “pode ter-se uma idéia viva quanto à maneira pela qual as pessoas jogavam futebol, da qual não temos realmente registros minuciosos, a partir de alguns documentos mais extensos deste período que chegaram até nós, mesmo que os jogos não fossem de facto jogados com uma bola ao pé, mas com outros aprestos.” (270)

xi. (270-4) O exemplo do hurling, no início do século XVII, subdividido em hurling to goales (leste de Cornwall) e to the countrey, no oeste (fonte: Richard Carew, Survey of Cornwall, 1602).

Hurling to goales (271-2): normalmente em casamentos; duas metas (oito ou dez pés de distância) marcadas com arbustos cravados no chão, 15, 20, 30 jogadores de cada lado, campo com dez ou doze pés; obtém a vitória quem atravessar a meta carregando a bola; não se pode passar a bola para frente [lei do impedimento], não se podia bater abaixo da cintura, mas valia empurrar e bater no peito do adversário com os punhos fechados. O confronto era homem a homem, era proibido que dois homens atacassem o portador da bola. Quem desrespeitasse as regras tinha as orelhas puxadas.

Hurling to the countrie (272-4): dois ou três cavalheiros convocam, num dia de feriado, três ou mais paróquias da parte leste ou sul, para baterem-se contra três ou mais paróquias do oeste ou norte. Meta era casa dos cavalheiros ou cidades ou aldeias, distantes 3 a 4 milhas. Números de cada lado eram desiguais. Bola era de prata. Portador da bola é posto ao chão, o que o obriga a passar a bola para um companheiro. Percorrem o terreno e seus acidentes naturais, confronto coletivo, em que há tática (posicionam-se jogadores nos flancos para evitar fuga), usam-se cavaleiros de ambos os lados, que também corriam o risco de serem derrubados. Às vezes usavam-se desvios para escapar. Celebração da vitória com cerveja, fornecida pelo cavalheiro [patrono da festa]. Vantagens e desvantagens do jogo: virilidade e espírito guerreiro x turbulência e danos físicos: regressam a casa como se viessem do campo de batalha: “cabeças ensanguentadas, ossos partidos e deslocados”, ferimentos que “abreviam seus dias”; nem o procurador nem a Coroa se importam.

xii. (274-8) Análise:

- (274-5) Jogo popular está relacionado à estrutura da sociedade inglesa: camponeses mais ou menos livres ó classe de proprietários rurais sem título de nobreza (apenas cavalheiros):

“um divertimento local, para uma população de camponeses mais ou menos livres da região, promovido pelos proprietários de terras locais, que, com frequência, embora nem sempre talvez, fossem não nobres.” (...) “Tanto os camponeses quanto a pequena nobreza desejavam conservar e desfrutar o jogo.”

- (275-6) Violência não era absoluta nem desregrada, já havia leis do costume e talvez regras, bem como um sentimento de “justiça”, mas não havia árbitro nem juiz externo. Regras tradicionais e regulamentos baseados no costume funcionavam “como uma espécie de auto-restrição coletiva” (276)

- (275-6) O futebol e os jogos populares eram uma forma de liberar as tensões.

- (276) Apego às tradições pois estas eram fundamentais para restringir e resolver os conflitos; aqui havia uma espécie primária de democracia: uma “democracia aldeã”:

“A forma de punir os infratores das ‘leis’ do jogo, como Carew o descreve, é um paradigma em pequena escala da democracia camponesa auto-regulada, com a relativamente diminuta supervisão de vigilantes do exterior.” (276)

- (276-7) Hurling continha elementos do que hoje são dois esportes diferentes: jogo de bola e luta corporal. Mas havia “um certo tipo de regulamentação tradicional” que limitava os ferimentos. Wrestling era um divertimento típico da Cornualha. Número de quedas impostas ao adversário era um fator importante para determinar o vencedor no hurling. Deviam surgir brigas também acerca de quem realmente vencera.

- (277) Mesmo no hurling to goales, o mais regulamentado, o critério para definir o vencedor não era tão nítido. A explicação para isto:

“Mesmo no final do século XVI, as sociedades européias não eram ainda sociedades de ‘medida’.”

- (277-8) De qualquer maneira, embora bem menos regulamentado, o jogo não era totalmente anárquico. Seria necessário refletir entre tipos diferentes de regulamentação a partir de estudos comparativos minuciosos e sistemáticos.

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